Comunità di S.Egidio


 

27/02/2003


'�frica est� no cora��o da Europa'
Fundador da comunidade Santo Eg�dio analisa Igreja e o mundo

 

Ainda estudante, Andrea Riccardi, nascido em Roma, em 1950, teve o sonho de mudar o mundo. Ao mesmo tempo que Paris vivia a euforia do Maio de 68, o jovem historiador pegou na B�biia -- como outros pegaram no livro vermelho de Mao " e fundou uma pequena comunidade religiosa. Hoje, 35 anos mais tarde, a comunidade de Santo Eg�dio tem no curr�culo dois acordos de paz: na Guatemala e em Mo�ambique. Riccardi acaba de lan�ar em Portugal O S�culo do Mart�rio {Qvetzal) - um livro que foi apresentado por M�rio Soares e D. Jos� Policarpo, o que diz da sua import�ncia e do prest�gio do seu autor.

Nascida da efervesc�ncia do Maio de 68, a comunidade de Santo Eg�dio recusa o r�tulo de Opus Dei de esquerda. Tal como n�o aceita ser considerada o bra�o secular do Vaticano. O fundador, Andrea Riccardi, garante que o laicismo e filho do esp�rito crist�o.

VIS�O: Como � que se tornou diplomata?

ANDREA RICCARDI: Eu n�o diria que nos tom�mos diplomatas. O que diria � que a guerra � a m�e de todas as pobrezas. Temos, portanto, de juntar as pessoas, por todas as formas. Mas uma grande parte do trabalho da comunidade de Santo Eg�dio � a solidariedade com os pobres. E, para n�s, o combate � guerra e o trabalho em prol da paz est� na linha do servi�o aos pobres.

V: A Comunidade de Santo Eg�dio aceita ser considerada uma esp�cie de minist�rio dos Neg�cios Estrangeiros do Vaticano?

AR: Perguntam-me isso muitas vezes e a minha resposta � �n�o�. O Vaticano nunca nos pediu que o f�ssemos e n�s nunca o fomos. O Vaticano trabalha com um tempo pr�prio, com uma l�gica muito sua. N�o somos o bra�o secular do Vaticano.

V: Dez anos depois do acordo de paz para Mo�ambique, qual diria que foi o segredo desse acordo?

AR: O nosso segredo foi o de juntar gente diferente, que se odiava, e, por meio de negocia��es, construir um clima de confian�a. � verdade que houve outros que o tentaram e n�o conseguiram. As nossas fortes rela��es pessoais com os protagonistas no terreno foram muito importantes. As negocia��es foram uma escola. Quer para a guerrilha da Renamo, que aprendeu as leis da democracia, quer para a Frelimo, que aprendeu a falar com os outros, acabando com a l�gica de regime �nico. Foi esse o segredo do milagre de Santo Eg�dio.

V: Diria, como homem de f�, que foi um milagre de inspira��o divina?

AR: N�o sei se foi inspira��o divina porque o esp�rito de Deus sopra por onde quer, mas estamos certos que o esp�rito de Deus � um esp�rito de paz e que aqueles que trabalham para a paz n�o est�o longe do esp�rito de Deus.

V: Os mais c�pticos dir�o que, sem garantias de dinheiro e de ajuda econ�mica, nada teria ssido poss�vel?

AR: As negocia��es custaram - creio - menos de um milh�o de d�lares. O que n�o � nada. Mas devo dizer que a paz abriu Mo�ambique ao desenvolvimento. Se for hoje a Maputo encontra outra cidade.

V: Dez anos depois, � uma paz s�lida?

AR: Julgo que sim.

V: Irrevers�vel?

AR: S� Deus o sabe. Nada � irrevers�vel neste mundo. Espero que o seja. Embora a decis�o do presidente Chissano de n�o se candidatar �s pr�ximas elei��es seja um facto muito significativo. Mais ainda numa �frica em que os chefes de Estado t�m dif�culdade em renunciar ao poder.

V: Costuma afirmar que a vossa inten��o � a de amarrar os problemas do mundo pobre ao mundo rico, em particular � Europa. O que quer dizer com isto?

AR: Estou convencido que n�s, europeus, n�o podemos esquecer �frica. Bem ou mal, �frica est� no cora��o da Europa. E o nosso sul. N�o podemos esquecer o nosso sul. N�o podemos pensar num futuro fechado, nos nossos p�quenos pa�ses europeus.

V: E a ideia segundo a qual se a casa do meu vizinho est� a arder a minha est� em perigo.

AR: Exactamente. N�o podemos pensar que a �frica est� longe de n�s. Se a �frica arder, n�s tamb�m nos queimamos. A imigra��o africana nasce em grande medida da crise que se vive em �frica.

V: A mais recente campanha da comunidade de Santo Eg�dio � a campanha contra a pena de morte. Quantas assinaturas j� recolheram?

AR: Penso que j� recolhemos uns 5 milh�es de assinaturas.

V: O objectivo anunciado � o de chegar aos 10 milh�es. Com que finalidade?

AR: Acima de tudo, o nosso objectivo � a aboli��o da pena de morte. O Homem n�o � dono da vida e n�o pode condenar � morte.

V: A inten��o anunciada era a de impor este debate nas Na��es Unidas. Acha poss�vel conseguirem-no ainda este ano, como pretendiam?

AR: N�o sei. Fal�mos recentemente com Kof� Annan. Acho que este debate tem de se tomar um debate cada vez mais alargado. O respeito pela vida humana � um valor universal e j� � aceite como valor universal. Embora haja muitos pa�ses onde este discurso ainda n�o passa.

V: O que � a rede de �cidades pela vida� que pretendem criar?

AR: � uma ideia que come�ou em Veneza, em It�lia. Agora j� s�o v�rias as cidades que est�o empenhadas na luta contra a pena de morte. Por exemplo, em Roma, o Coliseu - aquele grande monumento romano ao desprezo pela vida, onde os gladiadores e os escravos eram mortos em combates perante o Imperador - � iluminado de cada vez que h� um pa�s onde � abolida a pena de morte.

V: Tem havido avan�os nesse combate � pena de morte?

AR: Julgo que est� a crescer. H� uma maioria que come�a a prestar aten��o ao facto de a pena de morte ser uma loucura. Repare no que se passou recentemente nos Estados Unidos. � verdade que hoje todos nos sentimos inseguros neste mundo globalizado. Muito inseguros. De facto, h� muitos instintos violentos � solta no mundo contempor�neo.

V: A esperan�a que nasceu com o fim da guerra fria perdeu-se. Porqu�?

AR; Tem raz�o. H� o risco de perdermos a esperan�a no mundo de hoje � verdade que a seguir a 1989 poder�amos ter constru�do - todos - uma paz s�lida, mas em vez disso quantas guerras: a ex-Jugosl�via, os Balc�s, o Ruanda, o Burundi, o Congo, a Arg�lia e por a� adiante. N�o constru�mos rela��es internacionais s�lidas, fundadas na paz.

V: N�o teme os perigos de um papel demasiado presente das institui��es religiosas na vida secular?

AR: Acredito no laicismo. � decisivo para a nossa civiliza��o europeia. E espero que tamb�m seja aceite a n�vel mundial coisa que ainda n�o acontece. Ouso mesmo dizer que o laicismo � fruto do cristianismo. Bem sei que as Igrejas nem sempre o aceitaram bem. Tiveram medo dele. Mas o esp�rito laico vem do pr�prio cristianismo. Jesus disse: �Dai a C�sar o que � de C�sar e dai a Deus o que � de Deus.� Esta � uma diferen�a fundamental em rela��o ao Isl�o.

V:O que responde �queles que vos classificam como uma esp�cie de Opus Dei de esquerda?

AR: Bem, n�s chamamo-nos Santo Eg�dio, n�o nos chamamos Opus Dei. N�o somos nem de direita nem de esquerda. Todos nos conhecem e sabem qual � o nosso trabalho. N�o temos qualquer ambi��o de poder. Temos a ambi��o de viver intensamente o Evangelho. Penso que os r�tulos s�o sempre incorrectos e que n�o se pode falar de direita e de esquerda. Tem de se dizer que somos gente que trabalha pela paz e para os pobres.

V: O facto de a comunidade de Santo Eg�dio ter nascido em 1968 teve alguma cois� a ver com a efervesc�ncia social e pol�tica do Maio de 68?

AR" Teve uma rela��o profunda com 1968. Eu tinha 18 anos e era um daqueles estudantes que sentiam que era preciso mudar o mundo. Mas mudar o mundo como? Pareceu-me que o Evangelho poderia indicar-nos o rumo.

V: Acredita que a abertura recente dos arquivos de Pio XII pode vir a trazer revela��es, no que diz respeito �s rela��es entre o Vaticano e a Alemanha nazi?

AR: O Vaticano n�o tem nada a temer dos seus arquivos. J� foi encontrada uma importante carta de Edith Stein - a carmelita beatificada por Jo�o Paulo II e morta nos massacres dos judeus alem�es (porque esta carmelita era de origem judia) -, uma carta bel�ssima que escreveu a Pio XII onde diz: Santidade, tem de condenar o nazismo sen�o seremos acusados de sil�ncio; o nazismo � uma idolatria da ra�a. Veja, a Hist�ria � maravilhosa e dos arquivos da Hist�ria saem coisas maravilhosas.

V: E qual � a sua percep��o, hoje, do papel e das rela��es do Vaticano com o nazismo?

AR: Com o nazismo, houve um acordo t�cito de car�cter defensivo. Bem cedo, os cat�licos alem�es perceberam que o nazismo pretendia combater o cristianismo. � verdade que a posi��o dos crist�os na Alemanha era uma posi��o dif�cil. Tivemos crist�os nazis, houve crist�os pr�-nazis. Foi um grande teste. O problema - � preciso diz�-lo, porque as quest�es t�m de ser encaradas de frente - tem a ver com o sil�ncio de Pio XII. Porque � que este Papa n�o condenou abertamente o nazismo? A minha ideia � que o historiador n�o � um juiz. Deve procurar perceber. Eu tento perceber qual foi a posi��o deste Papa.

V: No seu entender, h� li��es desse per�odo a tirar, pela Igreja, particularmente hoje, quando volta a discutir-se em todo o mundo a quest�o da paz e da guerra?

AR: Penso que hoje o Pontificado � diferente do dos anos quarenta. Jo�o Paulo II fala de paz com muita for�a. Apoia muito as Na��es Unidas, o Pontificado fala de tudo e a prop�sito de tudo como uma das grandes inst�ncias mundiais. A Igreja Cat�lica permanece como um dos poucos imp�rios do mundo. Est� presente e tem interesses por todo o lado. O Iraque interessa-lhe, como lhe interessam as Filipinas ou Cabo Verde.

V: O Papa n�o hesita mesmo em receber um ministro de Saddam Hussein. N�o ser� esta uma decis�o que a Hist�ria pode tamb�m vir a julgar?

AR: Na minha opini�o, o Papa fez muit�ssimo bem em receber Tarek Aziz, o ministro de Saddam Hussein. Porque o Papa deve tentar, com toda a sua autoridade, falar com for�a da paz. Mas, tem raz�o, � um ministro de um ditador sanguin�rio.

V: E essa audi�ncia n�o pode resultar numa esp�cie de cau��o ao regime iraquiano?

AR: N�o, n�o � uma cau��o. Mas tamb�m lhe digo: n�o apreciei todo o circo que se montou em Roma durante a visita de Tarek Aziz. Houve, por exemplo, quem nos dissesse: n�o querem receb�-lo em Santo Eg�dio? E n�s respondemos: n�o, porqu�? O presidente da C�mara de Roma, Walter Veltroni, tamb�m se recusou a encontrar-se com ele, porque Tarek Aziz, durante a confer�ncia de imprensa, disse a uma jornalista: a si n�o lhe respondo, porque voc� � uma judia israelita. Isto n�o se pode fazer. Embora julgue que o Papa fez muito bem em receb�-lo. � preciso tentar tudo por tudo. Mas, naturalmente, � preciso tamb�m mostrar-lhe a nossa frieza em rela��o �quela regime que matou os curdos e que tem as pris�es cheias de gente.

V: H� mais santos ou mais m�rtires no mundo?

AR: N�o sei. N�o se faz essa contabilidade. Nem de santos nem de m�rtires. A B�blia diz que quando David quis fazer a contabilidade do povo de Deus veio uma terr�vel doen�a e muitos morreram. O melhor � n�o fazer contas. N�o sei quantos santos h�. Acho que j� me cruzei com alguns. Santos que tamb�m se tornam m�rtires. Mas n�s dos m�rtires temos uma ideia demasiado antiquada, no circo, no Coliseu.

V Foi por isso que escreveu O S�culo dos M�rtires, para trazer � superf�cie vidas esquecidas?

AR: Exactamente. Este foi para mim um livro especial. Eu julgava conhecer a Hist�ria do cristianismo no s�culo XX. Mas aqui fiz a Hist�ria das catacumbas. Uma outra Hist�ria. Cheia de gente simples, de gente pobre, de gente convicta. Na verdade, o s�culo XX foi um s�culo terr�vel, o s�culo das guerras, o s�culo das persegui��es mas tamb�m o s�culo do mart�rio dos crist�os.

V: A Igreja reconhece m�rtires entre os crentes de outras religi�es ou para os cat�licos s� h� mart�rio cat�lico?

AR: Jo�o Paulo II alargou muito este conceito. Uma vez um jornalista colocou-lhe esta quest�o: pode dizer-se que os seis milh�es de judeus mortos pelo nazismo s�o m�rtires? Ele respondeu que sim. N�o estamos, naturalmente, a falar em sentido can�nico e n�o queremos com isto dizer que os judeus mortos s�o crist�os. Os judeus foram mortos enquanto judeus.

V: Qual a �poca hist�rica com mais casos de mart�rio?

AR: Na minha opini�o, o s�culo XX. Aquilo que aconteceu na R�ssia � qualquer coisa de incr�vel. Na R�ssia, tivemos meio milh�o de crist�os mortos e uma centena de bispos assassinados, talvez mais.

V: O que resta da experi�ncia - na maior parte dos casos completamente ignorada- de todos esses m�rtires?

AR: Um testamento por abrir. Nesse testamento est� escrito que a for�a do cristianismo se revela na fraqueza. Quando sou fraco � que sou forte, diz Paulo. �

Carlos Vaz Marques