Comunità di S.Egidio


 

04/10/2007


O porqu� da mem�ria
O DIA 4 de Outubro de 1992 era um domingo. Dia de festa, dia de ressurrei��o. Mo�ambique ressurgia. Como bem sabem todos os mo�ambicanos, naquela manh� foi assinado o acordo geral de paz, ap�s longas e complexas negocia��es durante mais de dois anos nos locais da comunidade de Santo Eg�dio, em Roma.

 

No seu discurso, ouvido pelos mo�ambicanos colados ao r�dio, num grande sil�ncio em todo o pa�s, o ent�o Presidente Chissano, declarou a paz �irrevers�vel�. O l�der da Renamo, Dhlakama, ordenou em directo aos seus homens de depor as armas. Tinha dito em Roma: �n�o pegarei as armas nunca mais�. Tornava-se realidade um sonho que at� ent�o parecia imposs�vel: sair da guerra civil, e come�ar a construir regras democr�ticas de conviv�ncia entre for�as que tinham uma diferente vis�o do pa�s, desarmando as m�os, os cora��es e as mentes.

Fazer mem�rias, quinze anos depois, n�o � exaltar um tempo m�tico. � regressar a um dos momentos fundamentais de Mo�ambique de hoje. Claro, o acontecimento da paz em Mo�ambique foi mesmo uma experi�ncia extraordin�ria, uma aventura com muitos �golpes de teatro�. Hoje, em reconstru�-la, � importante sobretudo perguntar-se o que nos deixou, e como colher a heran�a.

A mem�ria � uma das bases de um futuro democr�tico. O esquecimento da hist�ria da paz, pois, faz correr o risco de favorecer as tenta��es emergentes a resolver os conflitos pol�ticos � que caracterizam a hist�ria de um povo � em modo n�o pol�tico e n�o parlamentar, �s vezes violento. Os conflitos pol�ticos do presente n�o podem fazer esquecer que a democracia deve ser levada a cabo atrav�s de uma �tica do bem comum. Por isso � preciso a mem�ria hist�rica que mete em luz os valores dos mo�ambicanos afirmados com a paz de 92.

O caso de Mo�ambique � um dos poucos exemplos felizes de uma negocia��o de paz que produziu uma paz douradora em �frica. Vieram de cada parte do mundo para estudar as raz�es. Passaram 15 anos, e Mo�ambique, apesar dos problemas, vive em paz. � uma li��o para o mundo que torna grande o nome de Mo�ambique.

A institui��o de 4 de Outubro como dia de festa nacional foi uma grande viragem nesse sentido. Esquecer era uma tenta��o. Este anivers�rio oferece-nos a ocasi�o para atingir a reserva moral e de responsabilidade representada pelo esp�rito do acordo assinado em Roma.

PROCURAR O QUE UNE

Lembro-me sempre com como��o das palavras do primeiro Comunicado Conjunto de 10 de Julho de 1990, redigido ap�s o primeiro encontro entre as duas partes beligerantes em Sant�Egidio, e que deixou espantados muitos c�pticos, enchendo de esperan�a o pa�s. Aquela linguagem tem em si a filosofia que levou ao acordo de 4 de Outubro de 1992. Vale a pena retom�-lo:

�Ambas as delega��es, reconhecendo-se como compatriotas e membros da grande fam�lia mo�ambicana, expressaram satisfa��o e agrado por este encontro directo, aberto e franco, o primeiro a ter lugar entre as duas partes. As duas delega��es manifestaram interesse e vontade de tudo fazerem para levarem a cabo um processo construtivo de busca de uma paz duradoura para o seu pa�s e para o seu povo. Tendo em considera��o os superiores interesses da na��o mo�ambicana, as duas partes concordaram que � necess�rio que se ponha de lado aquilo que as divide e que se concentre, com prioridade, a aten��o naquilo que as une, com vista a criarem uma base comum de trabalho para, no esp�rito de compreens�o e entendimento m�tuo, realizarem um di�logo no qual debatam os diferentes pontos de vista (�) e criar condi��es pol�ticas, econ�micas e sociais que permitam trazer uma paz duradoura e normalizar a vida de todos os cidad�os mo�ambicanos�.

P�r de lado o que divide, e concentrar prioritariamente a pr�pria aten��o no que une. O que � que une e deve unir todas as for�as pol�ticas de hoje em Mo�ambique? Existe pois um destino comum ao qual n�o se pode fugir. Eu pr�prio disse naquela ocasi�o, abrindo a reuni�o num clima tenso (era 8 de Julho de 1990):

�O que une n�o � pouco, ali�s � muito. � a grande fam�lia mo�ambicana, com a sua hist�ria muito antiga de sofrimentos, durante o infeliz per�odo colonial e durante os anos mais recentes. A unidade da fam�lia mo�ambicana sobreviveu a esta hist�ria de sofrimentos. Encontramo-nos hoje perante dois irm�os, verdadeiramente parte da mesma fam�lia, que fizeram experi�ncias diferentes nestes �ltimos anos, que lutaram entre si. Por experi�ncia familiar sabemos como as incompreens�es entre irm�os s�o muitas vezes as mais dolorosas, as mais profundas tamb�m sob o ponto de vista psicol�gico porque p�em em discuss�o as coisas mais queridas. Os conflitos com os estranhos passam. Entre irm�os parece tudo mais dif�cil. E, no entanto, continua-se sempre a ser irm�os, apesar de todas as experi�ncias dolorosas. Isto � aquilo que une, o ser irm�os mo�ambicanos, parte da mesma grande fam�lia�.

Este foi o segredo do acordo de Roma: os mo�ambicanos em luta reconheceram que s� aprendendo a viver juntos teria sido poss�vel acabar com a guerra e ter um futuro. O futuro � viver juntos. Ser parte de uma mesma fam�lia implicia isso. Este futuro, hoje, est� no meio de n�s. S�o os jovens, os adolescentes, as crian�as nascidas depois da paz. S�o os jovens que n�o conheceram a guerra, e aos quais � imperativo transmitir o valor da paz. Esta consci�ncia e este esp�rito � ainda necess�rio, eu julgo, para que Mo�ambique possa continuar a representar um exemplo para todo o continente africano e o mundo inteiro.Muitas coisas dividem, poucas unem. Unem coisas grandes e pequenas. A paz � uma coisa grande, e tem sido o patrim�nio comum da paz que impediu o regresso da guerra. Mas tamb�m algumas decis�es tomadas unanimemente pelo Parlamento (a institui��o de 4 de Outubro como dia de festa nacional, o novo hino nacional, etc.) s�o pequenos sinais da for�a de que o que une vai al�m das diverg�ncias pol�ticas.

Tamb�m a unidade nacional � um bem comum. Os partidos, nenhum exclu�do, levam a responsabilidade de aliment�-la. Sabemos, tamb�m por experi�ncias dolorosas, que a unidade do pa�s n�o se constr�i uma vez por todas. Deve ser alimentada, deve ser arrancado o regionalismo e o localismo, com a educa��o c�vica mas tamb�m com as pol�ticas de preven��o, de perequa��o social entre regi�es.

O SEGREDO DOS MEDIADORES

A paz mo�ambicana foi definida pelo ent�o Secret�rio-geral das Na��es Unidas, Boutros Boutros-Ghali, uma �paz italiana� porque tr�s dos quatro mediadores eram italianos: Andrea Riccardi e Matteo Zuppi da Comunidade de Sant�Egidio, Mario Raffaelli deputado do Parlamento italiano em representa��o do governo de Roma. O quarto mediador era o arcebispo de Beira, D. Jaime Gon�alves.

Boutros-Ghali escrever� em Setembro de 1993, reflectindo sobre a extraordin�ria paz mo�ambicana:

�A Comunidade de Sant�Egidio desenvolveu t�cnicas que s�o diferentes mas ao mesmo tempo complementares das usadas pelos "peacemakers" profissionais. Em Mo�ambique, a Comunidade trabalhou discretamente durante anos para proporcionar o encontro entre as duas partes. Usou bem os seus contactos. Foi especialmente eficaz no envolvimento de outros para que contribu�ssem para uma solu��o. P�s em pr�tica as suas t�cnicas caracterizadas pela discri��o e informalidade, em harmonia com o trabalho oficial feito pelos governos e pelos organismos inter-governamentais ( ...) uma mistura, �nica no g�nero, de actividade pacificadora governamental e n�o governamental. O respeito pelas partes em conflito, pelas partes envolvidas no terreno, � fundamental para o sucesso deste trabalho. A Comunidade acredita que, acima e al�m de cada diferen�a nacional, pol�tica ou confessional, o que une os seres humanos � muito mais daquilo que os divide�.

A media��o suscitou grande surpresa pois tinha sido feita n�o por pot�ncias estatais ou por institui��es internacionais (embora envolvidas colateralmente no articulado processo de media��o) mas sim por um grupo de pessoas que se podiam apenas definir de boa vontade. A sua �leveza institucional� era uma fraqueza mas tamb�m uma oportunidade, pois deixava-lhe grande liberdade de ac��o e dava-lhe uma credibilidade diferente daquela dos Estados e dos grande poderes: de n�o ter interesses pr�prios, pol�ticos ou econ�micos, para impor. � algo mais do que a imparcialidade.

�Quem s�o voc�s?� � perguntavam-nos. �s vezes, esta �fraqueza� tinha as suas consequ�ncias problem�ticas. Como quando o ent�o Ministro dos Neg�cios Estrangeiros italiano, De Michelis, talvez um pouco distra�do sobre o que se estava a passar, ap�s mais de um ano de col�quios em que It�lia j� era oficialmente �mediadora�, afirmou It�lia estava "pronta" a empenhar-se nas negocia��es " passando do papel n�o oficial para um papel oficial"! As delega��es de Mo�ambique ficaram at�nitas. Foi necess�rio intervir junto das autoridades italianas. Para remediar, o ent�o chefe do Governo, Andreotti, recebeu as delega��es tranquilizando-as.

COMPREENDER PARA PODER AJUDAR

Naquela altura n�o se compreendia muito sobre aquilo que se estava a passar em Mo�ambique. N�o � verdade que os mo�ambicanos s�o �complicados�, mas era necess�rio compreender como sair da guerra.

Era um quebracabe�a.

A primeira coisa a compreender era que j� n�o era poss�vel buscar a solu��o somente no exterior. � verdade, as causas origin�rias deviam ser procuradas no exterior: pense-se nas inger�ncias da Rhodesia e �frica do Sul que est�o na origem da Renamo, mas tamb�m �s ideologias revolucion�rias europeias feitas suas pela Frelimo.

Algu�m erroneamente interpreta a paz de Mo�ambique como um dos frutos do fim do comunismo.

Acabou a tens�o entre URSS-EUA, logo as duas partes se reconciliam. N�o foi assim. O Governo da Frelimo, politica e economicamente, era sempre mais independente do assim chamado bloco sovi�tico. Igualmente a Renamo n�o podia ser considerada como express�o do bloco ocidental ou bem acolhida por ele. Mesmo na segunda metade dos anos Oitenta, por exemplo, um relat�rio do Departamento de Estado americano tinha tirado qualquer dignidade pol�tica � Renamo, etiquetando-a como �bandidos armados�, comparando-os com os khmer vermelhos do Cambodja. A Renamo julgava toda a comunidade internacional �c�mplice� da Frelimo e queixava-se da escassa considera��o pela sua luta. Mas o ocidente n�o tinha d�vida em escolher o pragm�tico governo de Maputo mais do que a Gorongosa. A hist�ria era complexa.

Pois no final dos anos Oitenta o conlfito mo�ambicano era j� um conflito interno. N�o era pois uma guerra por procura��o. Sulfaricanos e portugueses, sovi�ticos e cubanos, j� n�o tinham voz influente. Mas a comunidade internacional n�o compreendia a situa��o.

A condi��o de inimigos, em guerra h� muitos anos, tinha atr�s de si um grande n�mero de v�timas, de refugiados, de deslocados, n�o era super�vel automaticamente � como algumas pessoas pensavam � gra�as � progressiva distens�o internacional, atrav�s do s�mbolo da queda do muro de Berlim (1989). Um conflito local como o mo�ambicano n�o vinha a acabar pela modifica��o do cen�rio internacional, ou atrav�s das press�es feitas sobre pa�ses terceiros. Era necess�rio agir sobre aqueles elementos que tinham determinado e alimentado a guerra, como as motiva��es tribais, as experi�ncias dolorosas de grande parte da popula��o, o �dio entre os rivais. Em Mo�ambique a guerra tinha-se tornado um factor end�mico. O conflito em Mo�ambique era j� uma guerra irreversivelmente cr�nica, com din�micas pr�prias, sobre as quais pouco podia fazer a diplomacia tradicional.

Algu�m se esfor�ava de entender a natureza da Renamo. As opini�es difusas sobre esse movimento eram pois confusas e contradit�rias, seja entre os mo�ambicanos seja os n�o mo�ambicanos. Constatou-se que a Renamo tinha uma presen�a not�vel, embora n�o est�vel, em boa parte do territ�rio de Mo�ambique rural; que recebia obedi�ncia e lealdade de frac��es consistentes da popula��o civil; que mostrava uma not�vel capacidade militar, com uma forte abnega��o e disciplina das tropas.

O aspecto militar parecia preponderante. Mas, pouco a pouco, come�amos a perceber que a Renamo tinha um �seu� programa �pol�tico�, simples se quiserem, mas efectivo: a oposi��o ao programa pol�tico da Frelimo. Isto �, era constru�do numa contraposi��o obstinada contra o que a Frelimo tinha feito desde o dia da independ�ncia. A Renamo apresentava-se como um movimento de reac��o a tudo isso. Nesse sentido n�o faltava de identidade pol�tica.

Todos os esfor�os da coopera��o internacional eram frustrados pelo estado de guerra. Sem a paz, podia-se ajudar uma parte da popula��o a n�o sucumbir, no breve prazo, por fome e doen�a, mas o resto da popula��o ficava fora da distribui��o das ajudas, e era imposs�vel come�ar uma verdadeira coopera��o para o desenvolvimento.

Neste cen�rio amadureceu a tentativa de Sant�Egidio, ao servi�o de uma via mo�ambicana pela paz. Era necess�rio procurar os motivos e as raz�es nos pr�prios mo�ambicanos.

Esta � uma grande li��o tamb�m para os desafios modernos. N�o se pode sempre dar a culpa aos outros. Claro, a conjuntura econ�mica e financeira mundial, ou as mudan�as clim�ticas s�o vari�veis independentes em rela��o a um pa�s de grandeza m�dio-pequena como Mo�ambique. Mas � demasiado f�cil apontar o dedo ao exterior. Em Mo�ambique a paz foi alcan�ada porque as partes souberam, pelo menos um bocado, meter-se em discuss�o, olhar-se ao espelho, sobretudo encontrar um entendimento: enfim mudaram porque acreditaram que eles pr�prios iriam conseguir. Que n�o era necess�rio esperar sempre pelos outros.

A PAZ N�O SE COMPRA NEM SE IMP�E

A media��o de paz para Mo�ambique ensina que a compreens�o cultural e antropol�gica das partes em conflito � decisiva. A necessidade de afinar a compreens�o humana dos actores da guerra foi talvez agudizada, no caso mo�ambicano, pela aus�ncia de instrumentos mais pesados para induzir os beligerantes � paz.

A paz em Mo�ambique n�o se deveu � interven��o de �poderes fortes�, ao uso de grandes meios financeiros, a promessas em d�lares sonantes, ao aparecimento de personalidades ou de presidentes ilustres, mas � decifra��o clara por parte dos mediadores dos complexos termos das quest�es, no plano pol�tico e no plano humano. Os quatro mediadores n�o dispunham de instrumentos militares ou econ�micos. N�o �compraram� a paz oferecendo dinheiro, como algumas vezes se faz.

Al�m disso, os mediadores n�o tinham fundos para comprar a paz, excepto o dinheiro necess�rio para a hospedagem em Roma das delega��es e as viagens.

Seja bem claro que as delega��es n�o recebiam nenhum �per diem�, hoje em dia t�o abusado. As delega��es n�o o pediam, e isto deve ser dito em sua honra. Infelizmente o �per diem� tornou-se uma praxe padr�o a n�vel internacional. Estudos recentes demonstraram que os �per diem� tendem a atrasar os processos de paz, mesmo pelo incentivo econ�mico distorcido que mete em movimento, que faz prevalecer os interesses privados ao bem comum. Mais tempo duram as negocia��es melhor �.

Mas em Mo�ambique o dinheiro n�o tinha nada a ver. O pa�s n�o precisava de uma paz regateada � qual as partes n�o acreditassem verdadeiramente. O verdadeiro problema era de obter uma paz da qual ambas as partes fossem persuadidas. Teria sido uma paz inst�vel. Assinar a paz devia ser um m�rito e uma honra para Chissano e Dhlakama, da qual eles seriam justamente orgulhosos. E ambos t�m sido legitimados por esta assinatura de paz, consciente e sincera, perante a opini�o p�blica mo�ambicana.

De resto, a paz n�o se pode impor, nem com o dinheiro nem com a for�a. De vez em quando se l� nesta ou naquela negocia��o o mediador p�s um prazo, al�m do qual os delegados ser�o corridos do hotel ou obrigados a pagar as suas contas, como forma de press�o apara alcan�ar o acordo. A filosofia da deadline ficou ausente das negocia��es mo�ambicanas.

Nem os textos foram impostos. Os textos de trabalho n�o eram fruto de hipot�ticas imposi��es dos facilitadores. � proposta sobre o assunto objecto da discuss�o apresentada por uma das partes, contrapunha-se, ap�s um ouvir atento da posi��o e das motiva��es, a reac��o. O compromisso nasceu da convic��o das duas partes. Recordo que os documentos eram preparados na base de textos fornecidos pelas duas delega��es, mesmo quando pondo-os em compara��o n�o tinha quase nada em comum. �s vezes havia s� uma frase, ou um par�grafo, que podia ir bem a ambos. Bem, partia-se de l�. E devagar devagarinho, a folha enchia-se. O texto da media��o, no fim, era produzido tendo em conta as duas l�gicas contr�rias, limado, modificado nas v�rias discuss�es, at� chegar � s�ntese.

Podia-se ficar a discutir muito tempo sobre uma ou duas palavras. Foi necess�rio muito tempo. Mas o resultado final foi um acordo que pertencia �s partes, um acordo verdadeiramente �mo�ambicano�. Uma li��o de ownership.

O QUE SE ESTAR� A PASSAR POR DETR�S DAQUELA PORTA?

Mais que um jornalista perguntou-se o que se estaria a passar exactamente por detr�s das portas (fechadas) do ex-convento de Sant�Egidio do qual a comunidade tomou o nome, no cora��o do popular bairro de Roma, Trastevere. Aqui a Comunidade, presente em cerca de 70 pa�ses no mundo, tem o seu centro. Devo fazer uma premissa, e digo-o com orgulho, que as negocia��es de Sant� Egidio foram negocia��es verdadeiras, entre duas partes em guerra, e n�o como em tantos processos de paz onde prevalece a hipocrisia. Os protagonistas do di�logo estavam em guerra h� 14 anos, e nesta situa��o era muito dif�cil ficar juntos. Um clima de confian�a n�o se constr�i do nada e � in�til fazer de conta que j� existe.

Por isso, excepto o brinde da noite de 10 de Julho de 1990 ap�s a assinatura do primeiro �comunicado conjunto�, o �nico encontro privado entre os dois chefes das delega��es em vinte e sete meses de negocia��es foi um almo�o no m�s seguinte entre o ministro Guebuza e Domingos, no m�s de Agosto daquele ano. Apenas rar�ssimas vezes houve encontros informais. As partes sentiam-se mais garantidas na mesa das negocia��es, num quadro formal, sempre reservado e fechado � imprensa, ou dialogando atrav�s dos mediadores.

Portanto nada de palmadinhas nas costas, aperitivos, drink, encontros de bastidores, nada de vigorosos apertos de m�os ou palavras como �meu irm�o�... como aquele clima falsamente amig�vel que j� vi em outras negocia��es, onde a m�scara da afabilidade e da bo�mia esconde hipocritamente antigas desconfian�as, �dio ancestral, desejo de vingan�a. Una informalidade artificial n�o exprimia o drama que as duas partes viviam e que o inteiro Mo�ambique vivia. Por isso se decidiu hospedar as delega��es em hot�is diferentes. Havia tamb�m a escolha diferenciada, n�o escrita, dos restaurantes, tendo em conta tamb�m a diferen�a de gostos�

A din�mica de encontros respeitosos, a portas fechadas, entre �compatriotas� (era este o apelativo usado), resultou vencedora. N�o havia cerim�nias nem afecta��o. �nica concess�o, o aperto de m�os antes de entrar na sala negocial, que se tornou bem cedo uma tradi��o, e depois a muito boa cozinha italiana, que se consumia por�m separadamente. Regras claras e muita seriedade nas rela��es com a comunica��o social. O m�todo era claro e flex�vel ao mesmo tempo: encontros directos; nenhum contacto entre eles al�m destes; eventuais reuni�es informais s� com a presen�a da facilita��o; nenhum contacto com a comunica��o social.

Mas isto n�o quer dizer que se tratou de negocia��es frias. O pr�prio clima de Sant�Egidio � n�o s� um edif�cio adapto a encontros importantes e reservados, mas um inteiro grupo de pessoas da Comunidade constantemente prontas em transformar cada contacto humano na possibilidade de limar atritos e diferen�as � tem tido um papel n�o secund�rio. Havia os mediadores. Havia quem acompanhava as delega��es, quem traduzia, quem conduzia, quem acompanhava as rela��es com a comunica��o social, quem preparava as salas, quem procurava bebida� N�o posso fazer um elenco de todas as compet�ncias que se revelaram necess�rias e �teis: a inform�tica (para os textos e os documentos), o direito (para os aspectos jur�dicos), a cozinha (por �bvios motivos). Era preciso fazer tudo o poss�vel para fazer sentir as delega��es � vontade, para se poderem concentrar naquilo que era mais importante: a paz.

Um testemunho do processo negocial como Cameron Hume, naquela altura diplom�tico dos EUA na Embaixada junto da Santa S�, escreveu:

�Apesar de n�o terem sido conduzidas por diplomatas profissionais, as negocia��es de paz para Mo�ambique produziram instrumentos t�cnicos sofisticados que uniram compet�ncias espec�ficas, psicologia, cultura hist�rica e jur�dica, flexibilidade e cultura pol�tica fora de vulgar. Paradoxalmente, foi a caracter�stica inicial de "outsiders", de mediadores efectivos "super partes" seriamente dedicados � causa da paz sem interesses pol�ticos, econ�micos ou de prest�gio internacional que constituiu um ponto de forca de todo o processo. O pr�prio clima da Comunidade de Santo Eg�dio � n�o apenas um ex-mosteiro adapto a encontros importantes e reservados, mas um inteiro grupo de pessoas constantemente empenhadas a transformar cada contacto humano na possibilidade de limar atritos e diferen�as � desempenhou um papel importante, sobretudo nos muitos per�odos de cansa�o e crise de di�logo.�

Em Sant�Egidio cada uma das duas delega��es tinha a sua sala, na qual se sentia �� vontade�, em casa, bem longe daquela dos seus compatriotas. Posso dizer que muitos quartos eram utilizados para as negocia��es. �s vezes apenas a igreja ficou livre. L� se orava pela paz.

Isto nos traz � forte inspira��o religiosa que permeou o esfor�o pela paz. A Comunidade de Sant�Egidio nasceu em 1968, ap�s o Conc�lio Vaticano II. Nutre-se de um humanismo, surgido do Evangelho, de um Evangelho levado a s�rio, feito cora��o da exist�ncia, feito esperan�a mobilizadora de energias de generosidade e de solidariedade. Este humanismo crist�o tem o seu encontro constante, ent�o como hoje, na solidariedade com aqueles que parecem ser condenados a ser os miser�veis da terra, nas grandes cidades opulentas do Norte como nas cidades e nos pa�ses do Sul. Deste humanismo, alimentado de f� e animado de esperan�a, nasce ainda hoje uma cultura de solidariedade. Deste humanismo nasce uma vida, uma filosofia, muitas iniciativas, vividas como di�logo com outros humanismos, com muitos mundos religiosos, com diversas culturas.

A for�a que empurrou todos para com a paz foi uma for�a �d�bil�, fruto de n�o ter outro interesse se n�o o da paz. Para os crentes esta for�a vem do imperativo de n�o ter inimigos; do sonho que as espadas se podem transformar em fauces, desarmando as m�os e os cora��es dos homens, ensinando o valor insubstitu�vel que representa a vida de cada um.

UM DI�LOGO AFRICANO FORA DE �FRICA

As partes encontraram assim um ponto de encontro onde se sentiram � vontade. Devo dizer que as negocia��es de Roma foi um verdadeiro di�logo �africano� e entre africanos, mesmo se longe de �frica. Porque negociar na Europa uma solu��o de um conflito africano? N�o era melhor encontrar uma solu��o a n�vel dos pa�ses da regi�o? � necess�rio recordar que as tentativas anteriores, como a de Nairobi, tinham falhado. A verdade que, mesmo dentro do per�metro dos muros de santo Eg�dio, em Roma, tratava-se de um verdadeiro encontro entre mo�ambicanos, no qual foi poss�vel enfrentar as raz�es do diss�dio e sobretudo encontrar uma solu��o entre �membros da mesma fam�lia�.

Al�m disso, a dist�ncia da madre p�tria desempenhou um papel positivo pois permitiu �s delega��es das duas partes de trabalhar em condi��es de seguran�a e livres das press�es impostas pelos combates. Assim Sant�Egidio transformou-se num local seguro: uma casa de paz, onde a confian�a no di�logo � servi�o � palavra e ao encontro � tornaram simples, quase natural, a busca da paz, com a ajuda de muitos. Muitas vezes no di�logo diplom�tico falta o elemento humano, isto � a compreens�o da diversidade do interlocutor. N�s tenazmente mantemos a porta do di�logo aberta mesmo quando os diplomatas de profiss�o pensavam que n�o houvesse mais possibilidade de negociar, pois a paz n�o podia perder a �ltima partida.

Trata-se portanto de uma paz suada, tecida com a paci�ncia, composta de mem�ria, amizade, gratuidade, aten��o, sensibilidade, conhecimento, amor pela hist�ria e pela complexidade, fidelidade. Este tecido criou o segredo do sucesso de Roma.

Isto nos traz de volta � sinergia de que a paz necessita. Ningu�m sozinho det�m a chave da paz. A capacidade de envolver outros (governos ocidentais, pa�ses da regi�o, sociedade civil, ect.) para que interagissem de forma construtiva foi um dos segredos da media��o. Estiveram presentes, pois, em Roma, como observadores, EUA, Gr�-bretanha, Fran�a, Portugal e ONU. Na dif�cil luta pela paz s�o sempre mais necess�rios contributos de actores diferentes, n�o em competi��o ou com l�gicas paralelas, mas, sim, numa saud�vel e eficaz complementaridade. Temos de reflectir como infelizmente muitas energias e oportunidades de paz s�o dispersas por causa de uma l�gica personalista de pa�ses e organiza��es.

DAS ARMAS � LUTA POL�TICA

Em Mo�ambique a paz permanece ap�s o fim do 4 de Outubro, tamb�m porque tem sido acompanhada por um processo de amadurecimento pol�tico. � algo revelador dos grandes recursos do povo mo�ambicano. Mo�ambique foi capaz de sabedoria. A sabedoria de procurar o bem comum, e esta sabedoria � muito necess�ria ainda hoje.

Esta sabedoria mostra como � sempre poss�vel operar a passagem de um conflito armado, onde a luta armada � vista como a �nica via para sustentar as pr�prias posi��es, a outras vias: em particular o di�logo e tamb�m o debate pol�tico que torna fecunda a democracia e garante o pluralismo.

O longo processo negocial nos locais e no jardim de Sant�Egidio, desgastante para quem n�o tivesse munido de uma grande paci�ncia, permitiu a evolu��o da mentalidade e da cultura de todos. N�o � por acaso que se chegou a assinar o primeiro dos sete protocolos somente depois de quinze meses de negocia��es, depois que a rodagem obrigat�ria havia permitido encontrar uma l�ngua pol�tica comum.

Para alcan�ar a paz n�o existia outra via se n�o levar o contencioso entre Frelimo e Renamo ao plano pol�tico, do momento que nenhum dos beligerantes era capaz de trazer a paz no pa�s atrav�s de uma vit�ria militar eliminando o advers�rio.

A obra de transforma��o da Renamo em movimento pol�tico, encorajada pelos mediadores, encontrava uma certa correspond�ncia nos seus pr�prios dirigentes.

Deve ser dito que um ponto de vista positivo a favor da paz era a uni�o do movimento de guerrilha.

Diferentemente de outros, a Renamo soube manter uma lideran�a unit�ria e forte. Isto favoreceu a resolu��o do conflito. Em �frica e no mundo, v�-se demasiado o fragmentar-se de sujeitos pol�tico-militares em v�rias componentes, mesmo quando se entra numa l�gica negocial. Os casos do Darfur ou do Burundi, com a prolifera��o de partidos, siglas, interlocutores, s�o apenas alguns exemplos da facilidade com que muitas vezes as guerrilhas se dividem, muitas vezes com base �tnica, ou entre a ala �militar� e a ala �politica�.

� preciso tamb�m dizer que o governo da Frelimo, por sua parte, abriu-se � mudan�a do sistema mono partid�rio dos primeiros quinze anos de independ�ncia ao pluralismo pol�tico democr�tico em todas as suas formas.

UM PROCESSO LONGO PARA �ACERTAR OS RELOGIOS�

Pouco a pouco, instaurou-se entre as partes um clima construtivo e refor�ou-se a op��o de resolver os problemas atrav�s do di�logo. Foi necess�ria muita flexibilidade e paci�ncia. Ci volle molta flessibilit� e pazienza. Vai e v�m entre hot�is e viagens ao Malawi, Mo�ambique, Europa, etc.

Alguns criticavam a lentid�o das negocia��es. Mas 27 meses n�o foram decididos pelos mediadores. Foi o tempo necess�rio, tendo em conta as limita��es existentes, para concluir com sucesso a dif�cil via das negocia��es, para obter a paz duradoura. � verdade que todos desejavam uma paz mais r�pida. Mas foi preciso tempo para encontrar um alfabeto comum e ultrapassar as incompreens�es da hist�ria e do presente, e tamb�m para encontrar as justas garantias para convencer a Renamo a depor as armas. Teria sido talvez mais f�cil, como no caso de Angola, adiar a resolu��o dos problemas aberto ap�s o cessar-fogo. Mas o falhan�o do acordo angolano de Bicesse (assinado em 1991 e violado j� em 1992) e a trag�dia que se seguiu na d�cada seguinte, demonstrou que tentar resolver os problemas, antes da assinatura definitiva, foi a op��o melhor para Mo�ambique.

Um ponto cr�tico que incidia sobre a dura��o das negocia��es foi a rela��o entre o que acontecia em Roma e o que acontecia no pa�s. Pois uma das maiores dificuldades, que travava a disponibilidade da Renamo, era representada paradoxalmente das mudan�as democr�ticas no pa�s. O que durante anos a Renamo tinha pedido � democratiza��o, pluralismo pol�tico, liberaliza��o da economia, etc. � vinha sendo concedido pelo Governo de Maputo antes que se discutisse na mesa das negocia��es. Por exemplo, j� tr�s semanas antes ap�s o primeiro encontro de Roma, a 31 de Julho de 1990, o Presidente Chissano havia anunciado pela primeira vez o multipartidarismo. Seguiram-se a nova Constitui��o e, em 1991 a lei sobre os Partidos.

Al�m de cada avalia��o sobre a oportunidade de tais medidas � � necess�rio recordar que o Governo se encontrava numa posi��o "estr�bica": com um olho tinha de olhar � Renamo, com o outro o resto do pa�s � aquelas mudan�as pelas quais a Renamo afirmava de ter lutado tinham, como consequ�ncia mesmo de a irritar. Via-se tirar as margens de poder negocial. Por isso n�o estava contente e isto atrasava a paz.

Este exemplo mostra a complexidade das negocia��es de paz, que n�o respondiam a esquemas ou l�gicas verificadas em situa��es an�logas. Era preciso ter isto em conta, para aproximar dois mundos diversos que respondem a l�gicas e a din�micas pr�prias. O que nos demos conta, pois, � que cada um tinha o seu �fuso hor�rio� ou se poderia dizer um calend�rio pr�prio. Era necess�rio, antes de mais, �acertar os rel�gios a tempo�, e isto significou meses de trabalho, para criar a confian�a necess�ria. � um problema que se apareceu tamb�m depois da paz. Governo e oposi��o tem caminhado muitas vezes a velocidades diferentes, e �s vezes o risco tem diso de ficar atr�s e n�o entender a oportunidade pol�tica do momento.

Perdeu-se tempo em Roma? Repercorrendo hoje com o pensamento os longos meses de negocia��es, os sofrimentos de Mo�ambique, devo dizer que n�o. N�o devemos por�m esquecer que a negocia��o partia de zero no sentido que era o primeiro encontro f�sico entre as duas delega��es ap�s anos de conflito.

Havia, portanto, necessidade de tempos fisiol�gicos de aceita��o m�tua. A desconfian�a e as d�vidas eram profund�ssimas em ambas as partes. Entretanto alguns diplomatas manifestava cepticismo, �s vezes a comunica��o social insistia que as negocia��es �se arrastavam�. Mas talvez foi mesmo a lentid�o que favoreceu uma aplica��o do Acordo relativamente f�cil, apesar dos atrasos da ONU. Pois, n�o houve incidentes entre as partes durante os longos sete meses de Outubro de 1992 at� Abril de 1993, quando finalmente entraram em ac��o os capacetes azuis.

DO PESSIMISMO AO DI�LOGO

N�o faltou, durante aqueles 27 meses de negocia��es de paz em Roma, o cepticismo, n�o apensa entre os diplomatas, bem como nas pessoas comuns: �qu� fazer? A realidade � essa, aqueles que fazem a guerra nunca mudar�o, s�o s� bandidos, etc��. Vozes que pareciam razo�veis, mas que na realidade eram sem esperan�a, v�timas daquele pessimismo que hoje muitas vezes aprisiona muitas pessoas e muitos povos.

Parecia pois imposs�vel sair da guerra civil, desarmar os �nimos e as m�os. �s vezes as guerras s�o, por sua natureza, o reino dom�nio do irracional, obedecem a sentimentos �dio e vingan�a, a etnicismos b�rbaros e il�gicos, � adrenalina dos combatentes. Parece mais l�gico responder com a viol�ncia. � a f�bula que a pessimista repete a si mesma e conta aos seus filhos.

Mas pessimismo e medo caminham par e passo. E o medo � muitas vezes mau conselheiro. O di�logo, pelo contr�rio, afasta o medo, pois ganha contra a ignor�ncia do outro. Esta � uma das li��es de Roma, que precisa ser retomada. Eu, durante aqueles longos meses, nunca perdi a esperan�a, mesmo se vivemos momentos dif�ceis. Sentia que os mo�ambicanos queriam a paz. Aprendi a estimar a seriedade do ministro Guebuza, ent�o chefe delega��o do governo. Reparei na ductilidade pol�tica do chefe delega��o da Renamo, Raul Domingos.

Quando visitei Mo�ambique no come�o de Mar�o de 2001, frisei no meu discurso no Parlamento a import�ncia da �cultura democr�tica do di�logo�. Realcei a mesma exist�ncia do Parlamento, algo n�o �bvio. Apesar das n�o poucas dificuldades, ele � express�o de uma democracia em paz, apesar os problemas que cada sociedade pol�tica apresenta. Antes de ent�o, o Parlamento multipartid�rio n�o existia. Hoje � uma garantia. Com todos os seus problemas e fraquezas, hoje � uma garantia. � um lugar privilegiado de contacto e di�logo entre as diferentes inst�ncias pol�ticas do pa�s. � l� onde se constr�i um di�logo comum, uma pr�tica, rela��es de estima e de colabora��o que s�o um capital a aumentar e conservar para as gera��es futuras.

Como durante a paz, nos momentos mais dif�ceis, sempre nos sustentou a convic��o que o conflito das armas se pode transformar em luta pol�tica, assim estou convicto que a cultura do di�logo � decisiva. Ela permitir� ganhar o desafio da constru��o de uma via �mo�ambicana� para a democracia, com o envolvimento sempre mais forte de representantes aut�nticos da sociedade civil. Uma democracia precisa de um sentimento nacional difuso, fundado nos valores e na �tica. Como comunicar o senso de um bem comum nacional �s jovens gera��es?

Com o di�logo as diversas identidades comp�em-se; sem o di�logo se contrastam rigidamente, at� ao choque. Surgem desafios grandes e dif�ceis: o desafio da constru��o de uma via �mo�ambicana� � democracia, ligada ao grande movimento democr�tico de Novecentos, mas tamb�m original e mo�ambicana, com o envolvimento sempre mais forte de representantes aut�nticos da sociedade civil. O Parlamento � o laborat�rio e a sede desta via mo�ambicana para a democracia. Claro que se n�o se trata de se fechar nas salas parlamentares, mas sim de enfrentar os problemas concretos do pa�s.

Como n�o recordar, ent�o, o desafio de uma pol�tica que toque com coragem os desequil�brios existentes no pa�s, a n�vel econ�mico, territorial, de riqueza, de rendimento, de oportunidade de estudo e emprego, de acesso aos servi�os de base e tudo mais! Penso no problema da sa�de e ao tratamento da SIDA. O crescimento econ�mico n�o se pode n�o acompanhar a um trabalho intenso para uma nova �tica, depois de tantos valores terem ca�do.

O individualismo desenfreado, a indiferen�a para com os mais fracos, a falta de uma cultura de di�logo e respeito m�tuo, podem tornar dif�cil o amanh�. A �tica precisa de valores, Os jovens precisam de um futuro melhor, mas precisam tamb�m de valores como se precisa de p�o. � o desafio dos jovens que caem no desespero das drogas, numa vida de viol�ncia e de delinqu�ncia, quase sem se reconhecer, sem se sentir parte desta sociedade. A democracia do di�logo pede valores e solidariedade.

A experi�ncia de Mo�ambique mostra que a paz � poss�vel: o di�logo � a �nica via para a alcan�ar. Foi necess�rio a coragem do di�logo para fazer sair o Pa�s de uma guerra civil que o estrangulava. Di�logo n�o � fraqueza, mesmo se algu�m possa teorizar o contr�rio. � a �nica via para por fim � viol�ncia. Ningu�m conquista a paz sozinho, pois esta � fruto do trabalho, humilde, da paciente tecelagem. Mo�ambique oferece uma li��o sobre o valor da arte do di�logo para construir a paz. Recordar o �esp�rito de Roma�, como exemplo positivo de di�logo para a supera��o das diferen�as em nome do bem da na��o, � um grande facto. Durante anos, em Mo�ambique, demasiadas vezes se tem esquecido aquele 4 de Outubro de 1992. Hoje n�o � assim. � um pilar da identidade mo�ambicana e da democracia.

O di�logo � o reconhecimento das diversidades, n�o sempre f�ceis, �s vezes dolorosas e a aceitar.

Nenhuma hegemonia tamb�m no mundo globalizado: somos muitos e diferentes, mas temos de viver juntos. H� duas vias: aquela demente de dobrar as diversidade e de lutar contra elas ou aquela s�bia de as acolher numa vis�o vasta e pac�fica do mundo. O di�logo � a arte de viver juntos. � aceitar que o outro pode ser diverso de mim.

UMA HERAN�A DE PAZ A FAZER VALER

Mo�ambique representa hoje para �frica um modelo. Aprendeu a usar o vocabul�rio da democracia, com a gram�tica do di�logo. Num continente onde o fim da guerra-fria marcou o desencadeamento de uma longa s�rie de guerras civis, genoc�dios, choques entre etnias e entre Estados, colapsos internos, Mo�ambique representa para toda �frica quase uma miragem de democracia e de conviv�ncia de identidades diversas. Os jovens, que n�o viveram o drama da guerra, n�o o podem esquecer.

Infelizmente, depois de 1992 em �frica rebentaram outros conflitos terr�veis, com milh�es de mortos.

Alguns, como o somali, t�m a tend�ncia a se tornar cr�nicos. H� alguns anos se falou de �renascimento africano�, seja na economia seja no advento de uma nova classe dirigente. Em muitos pa�ses aquele renascimento parece estar armadilhado. � justamente neste quadro n�o f�cil que emerge o valor da paz mo�ambicana.

Isto traz novas responsabilidades. Para que os frutos da paz possam saciar tamb�m outros. Depois de 1992, n�o poucos mo�ambicanos se encontraram envolvidos nos processos de paz africanos. Penso por exemplo ao papel desempenhado pelo Presidente Guebuza no Burundi, no come�o dos anos Noventa.

A paz � um bem a fazer render. Este racioc�nio vale tamb�m para a Europa, que tem uma heran�a preciosa de sessenta anos de paz. Do abismo da segunda guerra mundial, os europeus aprenderam quanto era est�pido combater-se um contra o outro. Quantos anos roubados a mulheres, crian�as, homens, por guerras est�pidas, viol�ncias inauditas, e massacres! Como a guerra europeia, por bem duas vezes durante o s�culo passado, tornou-se mundial, assim a paz europeia se pode tornar mundial.

Das cinzas da guerra nasce uma li��o de paz: nunca mais uns contra os outros e sempre mais uns com os outros! Mas o que fazer desta heran�a de paz? Perfila-se a tenta��o de a dissipar, como para as heran�as de grande valor: dissipa-a vivendo por si s� e n�o amando a vida.

SOCIEDADE CIVIL

Um outro elemento positivo para alcan�ar a paz foi tamb�m a press�o daquela que comunemente se define �sociedade civil�, solicitada discretamente pela pr�pria Comunidade de Sant�Egidio. O momento talvez mais comovente e claro foi a cerim�nia de entrega de mais de 100.000 assinatura recolhidas nas igrejas para empurrar as delega��es a concluir rapidamente as discuss�es. A mesa negocial, habitualmente arrumada, foi invadida de montanhas de folhas com as assinaturas pela paz. Algu�m, como Raul Domingos, chefe-delega��o da Renamo parou para ler os nomes. Mesmo ele n�o esquece a aut�ntica emo��o em encontrar entre muitas assinaturas, quase por acaso, a assinatura do seu pr�prio pai que n�o via h� mais de dez anos. Foi tocado profundamente.

A paz permitiu o desenvolvimento da sociedade civil, que encontrou express�es articuladas e novas. N�o � f�cil construir uma sociedade civil genu�na, e �s vezes existem casos de oportunismo. Mas a pol�tica necessita dela, por isso � preciso oferecer os instrumento a fim dela se poder exprimir. Pensamos ao valor dos activistas na �rea do HIV/Sida, que vi activos no programa DREAM para a luta contra a SIDA, da Comunidade de Santo Eg�dio, que tem em cura doentes em Mo�ambique.

A este prop�sito queria dizer que, sobretudo depois da paz, em todo Mo�ambique, nasceram muitas comunidades de Santo Eg�dio mo�ambicanas, das quais fazem parte milhares de pessoas, em todas as prov�ncias do pa�s. Estas comunidades s�o activas na solidariedade para quem � mais pobre e necessitado, trazem uma presen�a humanas nas cadeias, fazem escolas �s crian�as, d�o comida a pessoas que vivem na rua, defendem os direitos dos mais fracos, humanizam a sociedade. Esta rede de comunidades locais, cujos membros s�o maioritariamente jovens, volunt�rios (ningu�m � pago), representa um recurso para o pa�s. A experi�ncia que elas vivem � a do valor de cada pessoa humana. S�o estudantes, trabalhadores, desempregados, homens, mulheres, todos empenhados em iniciativas de solidariedade, na convic��o que �ningu�m � t�o pobre de n�o poder ajudar os outros�.

Testemunham tamb�m um amor pelo seu pa�s. Cada um pode ajudar o seu pr�prio povo a sonhar uma sociedade mais humana. Sobretudo, numa sociedade onde prevalece o mercado e onde �s� fala dinheiro�, � necess�rio que haja algu�m que leve para frente o valor c�vico do empenho civil, no sentido da gratuidade.

� preciso reinventar uma nova solidariedade africana, aquela do s�culo XXI. A reac��o generosa de tantos mo�ambicanos durante as cheias do vale do Zambeze em Fevereiro deste ano impressionou-me muito. Mostra que existe um desejo de justi�a nos cora��es e nas mentes, e que � preciso continuar a apoiar e alimentar estes sinais de humanismo, dos quais a sociedade mo�ambicana tanto precisa. Ela, muito mais que ontem, pode encontrar nela pr�pria os recursos, intelectuais e tamb�m econ�micos, no signo da solidariedade nacional, para responder �s emerg�ncias e �s exig�ncias da sociedade.

PARA UM MO�AMBIQUE SEM VIOL�NCIA

O anivers�rio da paz pede a todos um renovado empenho contra a viol�ncia. Os linchamentos que tristemente ocupam as p�ginas dos jornais (mas s� em parte � h� pois muitos de que n�o se tem conhecimento) correm o risco de ser aceites com um sentido de impot�ncia. A tenta��o da viol�ncia vai enfrentada � ra�z. O estado de sa�de e a maturidade de uma sociedade vem-se tamb�m nisto. Se por um lado deve ser refor�ado o estado de direito por outro n�o se resolve a viol�ncia apenas com um maior empenho na seguran�a e na justi�a. � necess�ria uma �tica dos valores.

Por exemplo n�o � poss�vel ser conciliantes, duma maneira complacente, com a assima chamada �justi�a do povo�. �s vezes oi�o express�es de resigna��o impotente, como se houvesse uma inevitabilidade da viol�ncia nas suas explos�es mais irracionais e instintivas, quase uma justifica��o (�a justi�a n�o funciona, portanto o povo faz justi�a pela suas pr�prias m�os�). Nuna a viol�ncia � justa. Enquanto que nos tempos de guerra os linchamentos eram express�o de uma sociedade ferida profundamente por uma viol�ncia difusa, em tempo de paz os linchamentos s�o a campainha de alarme que requerem um empenho maior por parte dos pol�ticos, das igrejas, da sociedade civil.

A luta contra a viol�ncia deve continuar: os linchamentos que tristemente t�m ensanguentado as cr�nicas recentes representam a vit�ria dos instintos e das paix�es, que � necess�rio contrastar com a raz�o e a �tica do valor da vida humana.

Al�m disso, constando h� muito tempo entre os pa�ses abolicionistas, Mo�ambique pode dar os eu contributo ao trend positivo na luta contra a pena capital em �frica que, embora constrangida mais que outros continentes por conflitos e pobreza, se distingue pela tend�ncia positiva para a aboli��o (a mais recente boa not�cia vem do Ruanda, cujo Parlamento votou o cancelamento da pena de morte do seu ordenamento jur�dico no passado 8 de Junho), seja na diminui��o constante do computo das execu��es.

Durante o recente congresso internacional �Africa for Life�, ocorrido em Roma a 18 de Junho passado, com a presen�a dos ministros da justi�a do continente, emergiu como �frica ser� o segundo continente (com a Europa) a ter renunciado inteiramente ao uso deste instrumento cruel. Trata-se de desenvolvimentos recentes, tamb�m para o continente europeu, onde a pena de morte foi aplicada durante s�culos. Foram as guerras mundiais do s�culo passado a empurrar Europa a imaginar um mundo em paz e sem pena de morte. � poss�vel portanto dar uma acelera��o a esta tend�ncia abolicionista. Basta pensar que em poucos anos, de 1990 a hoje, 47 pa�ses do mundo aboliram a pena de morte. Juntamente com �frica do Sul, Ruanda e outros pa�ses africanos abolicionistas, Mo�ambique pode contribuir fortemente ao sonho de uma �frica livre da pena de morte.

A paz portanto diz-nos respeito tamb�m hoje. Deve crescer, no profundo da vida e no profundo da sociedade. N�o � apenas aus�ncia da guerra, mas tamb�m ren�ncia � viol�ncia, desarmamento dos cora��es. Uma sociedade precisa de anticorpos contra a viol�ncia e contra a guerra. Isto requer o empenho da pol�tica e das institui��es.

O tema do pr�ximo encontro mundial de di�logo inter religioso pela paz, promovido por Sant� Egidio (no qual participar�o mais de 500 representantes das grandes religi�es mundiais, de f�s e culturas de cada parte do mundo) � �Por um mundo sem viol�ncia � Religi�es e culturas em di�logo�. Perante a viol�ncia t�o difusa, mesmo a n�veis diferentes, nas nossas sociedades, as conflituosidades da actual situa��o internacional, mas tamb�m ao desnorteamento que vive o homem contempor�neo, no Norte como no Sul do nosso mundo, sente-se a urg�ncia de reafirmar com coragem a via do di�logo e da coopera��o entre religi�es e culturas. O encontro que ter� lugar em N�poles de 21 a 23 de Outubro 2007, com a participa��o, como sempre, de uma delega��o mo�ambicana, chefiada pela Primeira-dama de Mo�ambique, Maria da Luz Dai Guebuza.

A PAZ DEVE CRESCER

Os impulsos centrifugos podem minar o futuro. Por exemplo pensamos �s diferen�as e as disparidades a n�vel regional, que podem representar uma causa de instabilidade a longo prazo. A maturidade de uma sociedade pol�tica � de identificar em tempo a semente m�, e arranc�-la. N�o � tarefa f�cil, mas � imprescind�vel se se quer manter a paz a longo prazo. Este � particularmente importante em vista dos pr�ximos encontros eleitorais de 2008-2009.

A paz deve crescer. N�o pode apenas ser conservada, deve tornar-se defesa dos direitos humanos, desenvolvimento; luta contra a SIDA; estabilidade da vida e das institui��es democr�ticas. Estes s�o os temas que unem. Hoje � o pr�prio pa�s que requer unidade para o bem comum. � a luta decisiva contra a Sida que o requer, guerra silenciosa, que dizima a vida de uma inteira gera��o. Para combater contra este inimigo � necess�rio uma lideran�a pol�tica. Ningu�m � isentado da batalha para o acesso ao tratamento m�dico, considerado um direito humano. Acesso tamb�m aos f�rmacos antiretrovirais est� pouco a pouco a transformar a Sida de uma condena��o a morte a uma doen�a cr�nica. A experi�ncia do programa DREAM da Comunidade de Santo Eg�dio move-se nessa direc��o.

Quinze anos de paz s�o poucos, mas s�o muitos tamb�m, para um pa�s jovem como Mo�ambique, onde metade da popula��o n�o conheceu a guerra. J� mais de metade da hist�ria de Mo�ambique � a hist�ria de uma democracia de paz. O anivers�rio do acordo de Roma empenha a outra metade a transmitir �s jovens gera��es a mem�ria da guerra, para que n�o seja dissipado o dom da paz.

�Por de lado o que divide, e procurar o que une�: de 4 de Outubro vem uma li��o sempre actual, de continuar a aplicar e fazer render, com o empenho de todos. O esp�rito de 4 de Outubro � o de uma democracia verdadeira, alcan�ada com fadiga, constru�da com paix�o: � o esp�rito do di�logo. Este esp�rito � um fundamento da vida mo�ambicana e a sua garantia.

Andrea Riccardi