Marco Impagliazzo era estudante num liceu de Roma, quando a Comunidade de Santo Egídio, que preside desde 2003, o levou a conhecer os pobres da cidade, sobretudo as crianças da periferia. A entrada na comunidade aos 15 anos levou-o desde cedo a questionar o que podia fazer pelos outros.
Hoje, gostaria de encontrar em todas as pessoas essa mesma entrega que o move e inspira num mundo capaz de recuperar o que diz ser uma ideia desaparecida de interesse comum. “O mundo tornou-se demasiado grande e receio uma grande resignação dos cidadãos que dizem que nada podem fazer”, disse em entrevista ao PÚBLICO dias antes de receber o Prémio Calouste Gulbenkian 2014, numa cerimónia esta segunda-feira em Lisboa, das mãos do ex-Presidente Jorge Sampaio que preside o júri. O prémio, criado em 2012 para reconhecer pessoas ou instituições que se distinguem pela defesa dos valores essenciais da condição humana, foi atribuído nesse ano à West-Eastern Divan Orchestra de Daniel Barenboim (que junta músicos israelitas, palestinianos e de outros países árabes) e, em 2013, à Biblioteca de Alexandria.
A missão da Comunidade de Santo Egídio, enquanto movimento cristão, fundado por um laico, com milhares de voluntários em mais de 70 países do mundo, é promover a paz?
Estamos muito empenhados nessa acção. Os portugueses conhecem-nos bem pela [mediação da] paz em Moçambique, assinada em Roma em 1992. A nossa actividade pela paz prosseguiu depois disso em África, na região dos Grandes Lagos, na Casamansa [região separatista do Senegal], e na região do Sahel. Mas a Comunidade de Santo Egídio também insistiu muito no papel das religiões para se alcançar a paz. Desde a iniciativa do Papa João Paulo II [Dia da Oração] em 1986 que reuniu em Assis, cidade de São Francisco, todas as religiões em nome da paz, abriu-se um espaço novo no mundo, encontrou-se um papel das religiões para a paz. As religiões são muito confrontadas com o problema da guerra. Muitas ideologias exploram as religiões para o apoio à violência, mas sabemos que na génese de cada religião está a paz.
Inclui Moçambique no conjunto de momentos mais marcantes da vida da comunidade?
Moçambique foi a grande expressão da força de paz que uma comunidade cristã pode ter. Para nós, foi uma surpresa. Não éramos diplomatas de profissão. Colocamos a questão humana sempre em primeiro lugar e, em Moçambique, utilizámos essa força, que não é política nem económica. A paz é um assunto demasiado importante para ser entregue apenas aos diplomatas ou aos políticos. Moçambique abriu-nos um grande caminho. Desde então, a Comunidade foi muitas vezes chamada para mediações de paz: Guiné-Conacri, Costa do Marfim, Níger. Não actuamos apenas como mediadores, temos também um papel de apoio à sociedade civil, de regresso à democracia. Muitas pessoas confiam em nós em África. E isso leva-nos a sermos ainda mais responsáveis pela paz.
Por isso, a Comunidade de Santo Egídio foi apelidada de ‘pequena ONU de Trastevere’ [o bairro antigo de Roma onde está situada]?
É uma amável definição do grande jornalista italiano, já falecido, Igor Man, que quis conjugar num só nome a ideia do discurso diplomático da ONU e essa raiz romana, muito familiar, do antigo bairro de Roma.
Em 1968, quando a comunidade foi fundada, o mundo era muito diferente daquilo que é hoje. A comunidade também mudou para acompanhar essa evolução?
Muito mudou no sentido em que o mundo agora já não está dividido em dois. O problema de fazer a paz no mundo globalizado é também este: o cidadão fica ultrapassado, e sem saber como agir, pela quantidade de informação de que dispõe. Interroga-se: ‘o que posso eu fazer pela Síria ou pela Ucrânia?’ A resposta é sempre uma resposta resignada. Há demasiadas mensagens que nos fazem ver o mundo como um mundo demasiado complicado. Perante isto, existe a tentação de [as pessoas] se distanciarem, se fecharem sobre si mesmas. Para nós, hoje, fazer a paz é ter interesse pelas coisas. O mundo tornou-se demasiado grande e temo a grande resignação dos cidadãos que dizem que nada podem fazer. Nós queremos demonstrar – e agradeço muito à Fundação Gulbenkian por isso – que é possível fazer alguma coisa, que a paz é possível.
Ao longo dos anos, quais os principais obstáculos encontrados pela Comunidade de Santo Egídio no seu papel de mediador?
Entre os obstáculos, está o facto de, por vezes, haver demasiados mediadores. Não é o nosso caso, mas hoje a paz tornou-se, para muita gente, um assunto económico. É preciso estar atento às reais intenções dos mediadores. A outra dificuldade é a fragmentação. O caso sírio, onde há demasiados grupos, é exemplar. Não há apenas duas partes a aproximar [para a paz]. Existe uma grande fragmentação que se transforma num segundo obstáculo. O terceiro, que já mencionei: o facto de cada pessoa, com a globalização, se fechar sobre si ou o seu grupo, sobre a sua religião. Já não há uma ideia geral dos problemas. Fechamo-nos e combatemo-nos em muitos pequenos grupos. E também vejo como obstáculo essa ideia de resignação de que a paz não é possível. Mas repito: a paz é possível.
Os interesses económicos dominam hoje os conflitos como os interesses da Guerra Fria no passado?
Sim. Antes, fazia-se a guerra por questões ideológicas. Hoje, pode fazer-se a guerra pelo petróleo, pelo cacau, pelo controlo das minas, e existem realmente muitos interesses económicos. Estou a lembrar-me, por exemplo, do caso da Colômbia. Começou como uma guerra ideológica, que se transformou numa guerra pelo controlo da droga. A economia ocupa sempre o primeiro lugar, antes era a política. Por isso, é por vezes mais difícil encontrar uma base concreta para a partilha de um projecto nacional. Queremos sempre lembrar às partes em conflito que há uma região a defender, uma ideia de Estado a defender, não apenas o controlo económico de qualquer riqueza [natural].
Antes havia mais esperança no mundo?
Mais esperança e sobretudo uma ideia do interesse geral, uma ideia do bem comum um pouco mais desenvolvida. É preciso regressar à ideia do bem comum, pois no nosso mundo vê-se sobretudo o interesse pessoal, ou o interesse de um grupo, ou de uma família, ou de uma etnia. É preciso incluir no discurso da paz o humanismo. Penso no humanismo cristão mas também essa ideia, bem conhecida em Portugal, de humanismo, como a defendida pelo ex-Presidente Mário Soares e de que o mundo tanto precisa. É preciso que essa ideia de humanismo – cristão ou socialista – regresse à sociedade.
A comunidade tem como referência São Francisco de Assis, que este Papa quis homenagear escolhendo o nome Francisco. Essa coincidência pode dar frutos?
Somos muitos próximos deste Papa que reuniu os pobres no centro do interesse da Igreja e do mundo inteiro. Ele fala sempre da periferia e nós somos uma comunidade que vive na periferia do mundo, vivemos sobretudo em África, e em países pobres do resto do mundo. Porém sentimos que na realidade não há periferia. O centro de todas as sociedades é o homem. A figura de São Francisco é capital – lembra-nos que os pobres são mestres para nós, porque nos ensinam a realidade do mundo.
Ana Dias Cordeiro
|